terça-feira, 29 de setembro de 2009

Plaquetuda Calibrosa

Fernanda Torres

Marília Gabriela me perguntou uma vez numa entrevista se eu já havia atingido a idade em que não queria mais ser reconhecida pela minha inteligência, mas sim pela beleza.. Respondi que, sem dúvida, eu me encontrava justamente nesse momento da vida. Não fui a menina mais popular da sala de aula, melhorei com o passar dos anos e agora, aos 40 e alguns, começo a perceber a curva descendente acenando com força moderada. E não é que nessa hora tão delicada dois elogios estranhos e inusitados me devolveram um certo orgulho da carne? Explico.

Fui doar sangue. Não é moleza doar sangue. Não pelo ato em si, que não dói nada e resolve a vida de muita gente. A dureza é ser aprovado no questionário minucioso, feito numa sala privada antes da doação. Parceiro fixo? Hepatite A, B, C? Sífilis? Gonorreia? HPV? HIV? Herpes? Fuma? Bebe? Toma algum remédio? Drogas injetáveis? Não injetáveis? Doença de Chagas? Diabetes? Pressão alta? Baixa? Históricos familiares... Conforme se avança na prova, é quase inevitável fazer uma revisão do passado, dos riscos da juventude, dos excessos, mancadas e bobeiras, das heranças, dos vícios, dramas e arrependimentos da vida toda. Funciona quase como uma boa sessão de análise.

Passado o teste, fui encaminhada para a cadeira astronáutica do banco de sangue. Passaram o garrote no meu braço, e o olho da enfermeira faiscou ao ver a veia saltar.

- Hummmm... Calibrosa! - disse ela, já chamando a colega do lado para dar uma olhada. As duas trocaram sorrisos interessados. Percebi nas hematologistas uma enorme ganância de veias bojudas. Pareciam vampiras do bem. Deixei meio litro de sangue para elas e, com o tal orgulho da carne, ou seja, do meu sistema venoso, prometi voltar para doar as plaquetas.

Voltei. Doar plaquetas é outro capítulo. Além das veias fartas, é preciso ter um fluxo grande de circulação sanguínea para encher a máquina, uma geringonça impressionante que retira o sangue, separa as plaquetas e depois devolve o plasma e as hemácias para você. Foi lá que recebi outro cumprimento esdrúxulo:

- Hummmmm... Plaquetuda!

Não soa tão bem quanto calibrosa, parece mais xingamento, mas não me incomodei. Estou naquela fase que a Marília citou, qualquer elogio à matéria é bem-vindo. Podem espalhar por aí que sou uma dona plaquetuda calibrosa. Vai ser o meu mais novo cartão de visita.

Depois dos 40 é comum receber más notícias dos médicos e, invariavelmente, uma batelada de exames para fazer. Mamografia, curva glicêmica, para os homens o temível toque de próstata, isso sem falar na colonoscopia, nos incontáveis ultrassons e no raio X dos joelhos, para quem nunca perdeu o futebol. Aos 20, a gente torce o pé e continua andando. Aos 30, o doutor te receita um analgésico por telefone e recomenda repouso. Aos 40, ele já vai te engessar, medicar e botar na fisioterapia. Aos 50, te interna, abre e mete um pino.

Meu clínico geral me disse rindo que chegamos à era da reposição de peças. Se uma civilização futura (será que isso vai existir?) for cavucar as nossas tumbas, só vai encontrar implante de silicone, osso de platina, joelho artificial... Vai-se a carne, ficam as próteses.

Se tivermos a sorte de viver muito, enfrentaremos as inevitáveis doenças degenerativas. Hoje eu entendo a importância de poder contar com um banco de sangue confiável e bem fornido. A gente nunca sabe quando vai precisar. Gostei de doar sangue, é algo que todos os que têm condições deveriam fazer por si mesmos, pelos seus e pelos outros. Se você tem fator RH negativo, então, pense seriamente no caso. A necessidade é grande. Peça ao seu médico que lhe indique um banco adequado. Quem sabe você ainda não sai coberto de novos adjetivos?

Revista Veja Rio - 13/03/2009